Esta notícia deixou-me sem chão...
Quando se trabalha com crianças, não se está à espera de que algo deste tipo aconteça... Não é justo, não é esperado, não é o decurso natural das coisas...
Eu, trabalhando com algumas crianças com multideficiência, vejo-o como possível em crianças que têm graves problemas respiratórios, doenças degenerativas, risco de vida constante... Agora a A. não! Nada o fazia prever, no entanto aconteceu, de repente...
A A. era uma menina apaixonante. Conheci-a no ano passado, numa das escolas onde trabalhei e ficou como uma das crianças mais marcantes. É injusto, mas é óbvio que acontece, há sempre aquelas que, por um motivo ou outro, nos marcam mais. E esta foi pela personalidade.
Depois de, em Outubro, ter mudado de escola, não tive coragem para ir visitar a sala da A., a sala que, de todas, me ficou mais no coração. Lá vivi momentos fantásticos, muitos do quais com ela e custou-me muito a quebra. Conformei-me pelo facto de que, mesmo que continuasse na mesma escola, não iria àquela sala... Mas foi difícil, apesar de, em todos os sentidos, ter sido melhor para mim. Durante meses adiei constantemente a visita, não me sentia preparada... Finalmente, algures entre Janeiro e Fevereiro, lá fui. Felizmente que fui... Não me ia perdoar se ainda não tivesse ido... Não com isto...
Nessa visita, estive com a A. de fugida, mas foi muito bom. Não me ligou muito, mas não me importei, até porque contava voltar em breve... Estava bonita, de cabelo maior, apanhado nuns totós que lhe davam muita graça. Falámos dela (eu e a educadora), de como estava bem este ano, a ir à sala de aula e tudo (no ano passado não conseguia ir, pelo comportamento desadequado). Falámos de como continuava brutinha e provocadora com todos. Mas de como estava a mostrar as competências que sempre acreditámos que tinha... Ela vai longe, dissemos... Longe...
Quando penso nela, lembro-me do olhar vivo e provocador, de quem faz uma asneira, sabe que o está a fazer e sabe que aquela pessoa à frente dela não vai gostar da ideia.
Lembro-me da resistência inicial às sessões de Terapia da Fala, 10/15 minutos era o que ela aguentava no início. Lembro-me da forma como tentava fugir da sala onde tinha terapia, reinventava N estratégias para conseguir o que queria...
Recordo os movimentos bruscos com que agarrava nos colegas, mais pequenos que ela, magoando-os quase sempre, embora por vezes com óptimas intenções (de os ajudar, na perspectiva dela). Particularmente o R., que tinha um medo terrível de andar sozinho, a quem ela puxava pelas mãos, insensivel ao medo, enquanto ele gritava: "A., pára, A.". O certo é que lhe tirou alguns medos com esta estratégia bruta! :)
Lembro-me da sua forma de falar "rude", algo rouca, e de como me chamava "Rafael", pela dificuldade em dizer o Q. E da forma como, às vezes, parecia motivada para o treino da fala e se esforçava por dizer melhor as palavras. E da maneira... original (?) como imitava os gestos, muito imperfeitos, mas com muita graça!
E da matreirice, quando à socapa se metia com os colegas, fosse com beliscões, fosse com palmadas, fosse a roubar-lhes o jogo... Só para provocar reacções.
A forma atabalhoada como reproduzia o que os adultos lhe ordenavam com frequência: "A., não abusa!"
E a maneira como se ria. E como desafiava os adultos. E as boladas que levei na piscina de bolas...
Recordo particularmente o beijo que me deu no final do ano lectivo passado, quando me vim embora, para não voltar.
Recordo... Porque agora só me resta recordar...
É injusto, é revoltante, é triste, muito triste. Uma menina tão pequenina e tão especial... Que não teve muita sorte, infelizmente... Em vários aspectos...
Enfim, a vida não é justa e eu cada vez mais me convenço disso...
Para ti...
A.:
Foste uma estrelinha que passou por mim e que me apaixonou.
Vivi contigo momentos muito especiais e nunca os poderei esquecer. As histórias que me deixaste para contar, ficarão para sempre comigo e com aqueles com quem as possa partilhar.
Espero que estejas num sítio muito bonito, mas suficientemente activo, porque é disso que tu gostas.
E quem sabe um dia nos reencontramos e pode ser que ainda te lembres de mim...
Serás, para sempre, a minha Babuska!